Isaías* correu para terminar de alimentar os porcos. Viu de longe o do tipo barrão, bicho brabo, que dá carreira em homem feito. Contou-os um a um. Cinquenta e quatro. Repetiu o protocolo cotidiano que fazia há quase dois anos, desde que o pai morreu. Pegou os R$ 3 diários com o dono dos animais, tão emporcalhados quanto ele e os demais residentes da comunidade Três Paus, às margens do lixão de Carpina, na Mata Norte do estado. Com o "salário", do alto de seus sete anos, comprava sete bolos ou bolachas numa venda qualquer, na tentativa nada infantil de manter funcionando sete estômagos - o dele e o dos irmãos. Sete já foi número de azar. De abandono e incerteza. Sete era a fome que sentia, sete dias na semana.
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Larissa* estuda mais que sonha. Mas o desejo mesmo é ser modelo. Faz pose, ensaia sorrisos e esconde as mãos. Aos 12 anos, tem palma e dedos de senhora. As marcas de água sanitária, impressas há quase três anos, são evidentes. Herança dos tempos que lavava roupas e louças, enxaguando fora a sujeira, deixando escorrer junto a própria inocência. Lembra quando o pagamento de R$ 50 ou R$ 100 por mês era parcelado. Metade, enterrava em um buraco nas redondezas do lixão. A outra, seria obrigada a entregar à mãe, depois de apanhar. Coisas de quem precisa beber sem ter como pagar. Depois, voltava, escondida, para recuperar o fruto do suor de menina de 10 anos que aprendera cedo a somar e dividir. Para a maioria, conta de dividir por um sempre foi fácil e, por sete, complicado. Para Larissa, era o contrário.
Dia 11 de março. Quinta-feira ingrata de um carnaval tardio que nunca acaba. Terezinha* está em busca de Jesus* pelas ladeiras de Paudalho, em seus dias de Olinda. Numa festa sem Deus, não encontra seu homem. Após quatro dias sem pisar em casa, volta em desalinho para a residência de sete cômodos, em 40 metros quadrados. Porta aberta, silêncio de cortar a alma. É avisada pelos vizinhos que os rebentos foram "levados". Grita, chora e, então dorme. Descansa o corpo do pós-festa de uma mãe de sete. Vai acordar numa ressaca que parece não mais passar.
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Rosângela Guimarães de Lima, 42, se emociona e a voz mal sai. Diz que a mãe biológica visita as crianças, vez ou outra, e sempre diz que as terá de volta. "E ela não os terá. Dói muito saber disso. Sei que ser privada de ser mãe é uma dor que não se suporta. Mas sinto por eles também. Se esperassem por ela sempre que precisassem, um dia, ela não voltaria", conta a mãe social, cuidadora profissional, contratada para criar os sete até que eles sejam reintegrados à família ou adotados. Rosângela conduz a casa-lar, num bairro popular da mesma Carpina na qual todos eles nasceram, à luz dos mandamentos das Aldeias Infantis, ONG internacional que atua no acolhimento de crianças em situação de vulnerabilidade. "Eles são muito educados. Pedem a bênção às seis da noite, sempre fazem uma oração própria antes da refeição e são muito afetuosos", descreve a mulher, mãe de um rapaz de 21 anos e que, na profissão, desde 2010, aprendeu a chorar junto, quantas vezes fossem necessárias.
Inocências perdidas
Isaías vê o irmão se aproximar e indica "esse é o inteligente". Moisés* lê tudo, em partes. Com os grandes olhos examina o mundo e o questiona. "Aqui é diferente. Lá eu cuidava de bois grandes", lembra o menino de nove primaveras sobre a própria vida, três anos antes. Sem pretensões, vai contando aventuras de quando admirava Isaías, um ano mais velho, subir num cavalo e sair em desatino tangendo bichos por entre os declives do lixão. E ri ao lembrar quando o vaqueiro-mirim foi derrotado pelos animais. "Ele caiu e três bois passaram por cima dele", conta. "Mas uma vizinha botou remédio em mim", adianta-se o companheiro de aventuras. E os dois vão montando o histórico profissional, já mais extenso que o de muito recém-formado em universidade. Riem, sequer desconfiando haver erro em tudo. Eduarda*, irmã mais velha, observa, calada. É alheia às palavras, mas diz querer ser professora. Ri baixo e pouco. Não encontra muitos motivos.
Isaías vê o irmão se aproximar e indica "esse é o inteligente". Moisés* lê tudo, em partes. Com os grandes olhos examina o mundo e o questiona. "Aqui é diferente. Lá eu cuidava de bois grandes", lembra o menino de nove primaveras sobre a própria vida, três anos antes. Sem pretensões, vai contando aventuras de quando admirava Isaías, um ano mais velho, subir num cavalo e sair em desatino tangendo bichos por entre os declives do lixão. E ri ao lembrar quando o vaqueiro-mirim foi derrotado pelos animais. "Ele caiu e três bois passaram por cima dele", conta. "Mas uma vizinha botou remédio em mim", adianta-se o companheiro de aventuras. E os dois vão montando o histórico profissional, já mais extenso que o de muito recém-formado em universidade. Riem, sequer desconfiando haver erro em tudo. Eduarda*, irmã mais velha, observa, calada. É alheia às palavras, mas diz querer ser professora. Ri baixo e pouco. Não encontra muitos motivos.
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Entrando pela porta entreaberta, Severina Aurelaide, 31, encontra vidas bem mais severinas que a de seu nome. Meninos pretos, em toda negritude que a sujeira poderia conferi-los. Reuniu os que ainda se aventuravam pelos caminhos de lixo dentro da casa que diziam ser deles. Do lado de fora, os mesmos vizinhos que antes gritavam "abandono", agora esbravejam "vão embora". Pega dos braços da irmã mais velha, um magro bebê de oito meses, de quem a menina nunca se separa. Em poucos segundos, se vê coberta em fezes, num ambiente sem fralda, comida ou atenção. "Mainha saiu" é tudo que ouve. No canto, observa a menina de dois anos, quase sem forças, de cabelos desgrenhados. É tudo que consegue assimilar. Com a ajuda da polícia, conduz sete. Fez sentir presença. Ignorou os berros. Como conselheira tutelar, foi ser humano profissional.
Domingos* carrega enxada e um punhado de sementes. Ao lado, três meninos pequenos assistem ao remexer de terra. Dizia que filho dele tinha que saber se virar e ter educação para ser alguém. Ensinou como tirar o ganho da terra, mas também a entoar reza antes de saciar a fome e pedir bênção dos pais na hora da santa, quando o sol se esconde. O garoto André* pega numa das ferramentas e ensaia uma ajuda. Depois de ver que está fazendo bem, o manda de volta para casa, correndo. Ele tem que saber como se faz só num caso de necessidade. E não há necessidade. Ele traz comida para casa todo dia, graças ao suor do trabalho. Depois da horta, revira os sacos do lixão atrás do que possa aproveitar - para usar ou vender -. Depois volta para o chamego dos cinco filhos e das duas meninas de Terezinha, que são como suas. É assim, todo dia. Das sete às sete.
Rosângela cozinha para ela e duas adolescentes que cuida pelo projeto de acolhimento Aldeias Infantis. São o primeiro desafio desde que se tornou mãe social na cidade de Carpina. Perdeu o olhar num canto da cozinha enquanto ligava para a sede do projeto para pedir apoio. Sentia que sua vida - e trabalho - iria mudar. A contemplação foi interrompida pela campainha estridente. "Temos visita!", anunciou às meninas, antes de alcançar a porta. Carro de polícia, Conselho Tutelar e várias crianças no batente. Viu quando Severina Aurelaide, junto a outra colega, a cumprimentou com o olhar e deu passagem a sete magras crianças cobertas em pó, lama e grude. "A gente ajuda, tia!", adiantou-se uma das adolescentes e foi liderar um mutirão de banho e ampliação do jantar. Rosa tomou no braço Matheus*, de oito meses e de gritos fartos sempre que ela o tocava a cabeça. "É que 'padrasto' dava nele na cabeça", alerta uma das recém-chegadas. Depois do bebê, começa a banhar Bárbara*, dois anos, riso fácil a brilhar num rosto magro e mal cuidado. Surpreende-se ao ver as crianças, cheias de fome, parar para orar antes de devorar pratos cheios. A vida mudara mais rápido que pensava. Olha o relógio: sete da noite.
Entre o passado e o futuroÉ uma tarde chuvosa de agosto de 2013 e Terezinha dorme, sozinha, em casa. Jesus a deixou há semanas. Agora, mora com Francisco. De novo. "É o pai de Eduarda, minha primeira filha. Voltamos", diz. Dos quatro companheiros, não teve filho apenas com Jesus. Francisco é pai da mais velha. Com um vizinho da casa da frente teve Larissa, e com o irmão dele, Domingos, viveu concebeu outros cinco. "Sou 'ligada'. Posso mais ter filho não. E tomo remédio agora. Tudo certinho", conta. Diz ter algum "problema de cabeça". É doente. E, no entanto, lhe dói mais a saudade.
"Eles estão sendo bem cuidados lá, né? Mas eu espero eles de volta. Sim", conta, com o esforço que sua gagueira nervosa exige. Acredita que tiraram seus filhos graças a Jesus. "Agora ele já foi e eles podem voltar, né? Porque ele judiava deles", fala. E ela não fazia o mesmo? "Não. Eu não dava neles". E as cicatrizes de Larissa? Ela nunca foi amarrada na cama para apanhar? "Não. Nunca bati neles, não. Tratava bem". E não bebia? Sumia? "Não. Sou evangélica". O olhar entrega que os meninos contaram outra história… "Tá bom. Tomava duas cervejas, mas só. E só saí, rapidinho, no carnaval, mas não fazia isso muito", finaliza, perdendo o olhar nos passarinhos da frente de casa - quatro deles, sem água nos bebedouros. Nem compreende quando é informada que a Justiça, há um mês, a destituiu do poder familiar e as crianças seguirão para cadastro de adoção. Ignora. Anda pela casa de sete ambientes. Não entrar em apenas dois. Quartos. Vazios.
A casa de alvenaria, antes era de papelão e madeira. Numa das andanças pelo lixão de Carpina, Domingos achou um saco escuro. Deixou todo o resto para trás. Meteu a mão no plástico e a tirou de volta com mais dinheiro do que vira há anos. Correu para casa. Lá, pelos próximos dias, ergueria paredes e fundações no melhor material que pôde encontrar. Morreu meses depois, fazendo gosto que a casa seria dos pequenos. Não se fez ouvir.
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Abrigados há quase três anos, os sete irmãos se desafiam para ver quem vai melhor na escola. Um incentivo para contornar o atraso que vai do menino de 3 anos à adolescente de 15. Elencam as profissões sonhadas. De "policial e goleiro" a "gestor". Depois, correm pela grande casa, sobem nos beliches do "quarto dos garotos" e mostram o outro, o das "moças". Sabem o que é adoção, mas não falam sobre o assunto. Em vez de "esperar", aproveitam o momento, mais infantil e inocente que tantos dos capítulos de suas histórias. Comemoram o que podem, participando de festividades da cidade. O aniversário é pouco depois do Dia da Independência. Isaías e Larissa desfilam no sete de setembro, e também no dia 11. Os irmãos assistem da lateral da avenida, na esperança que possam, também, dominar instrumentos musicais e nunca mais cavar buracos pelo chão.
* Nomes fictícios escolhidos pelas crianças, exceto Bárbara, 2, que originalmente queria ser "Barbie"
Diário de Pernambuco